27/04/2021 às 17h10min - Atualizada em 27/04/2021 às 17h10min

Adenovírus replicante na vacina Sputnik V: entenda o que levou Anvisa a negar importação

Agência afirmou que o vetor da vacina, que não deveria conseguir se replicar, teve uma recombinação e passou a produzir cópias de seu material genético dentro das células. Veja o que isso significa

- Lara Pinheiro

Na segunda-feira (26), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) negou a importação da vacina Sputnik V, desenvolvida pela Rússia contra a Covid-19. Entre outros pontos, a agência apontou que um dos vírus vetores da vacina estava se replicando – quando não deveria fazer isso.

A vacina russa usa dois adenovírus como vetores: o adenovírus 5 (Ad5) e o 26 (Ad26). Em humanos, o adenovírus causa resfriados. Os técnicos da Anvisa constataram que, diferente do que seria esperado, o Ad5 havia conseguido se recombinar e recuperar a capacidade de replicação.

De forma resumida, a replicação do vetor significa que a Rússia falhou no controle de qualidade da vacina, mas não quer dizer que a Sputnik V deu errado e nem que as pessoas que a recebem podem ficar gravemente doentes, explica o cientista Oscar Bruna-Romero, professor de doenças infecciosas e vacinas no Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

1) O que a replicação significa na prática? Qual o tamanho do problema?

Ao analisar os dados da vacina, o gerente-geral de Medicamentos e Produtos Biológicos da Anvisa, Gustavo Mendes, listou 6 perguntas que chamou de "cruciais" e que não foram, segundo ele, respondidas pelos pesquisadores russos. Uma delas é o que a replicação significa em termos de segurança da vacina.

Bruna-Romero avalia que, provavelmente, uma pequena quantidade de adenovírus "existiu o tempo todo" na Sputnik V. O vírus replicante em si não é um problema grave – e, sim, qual a frequência em que ele ocorre. O ideal, por exemplo, é que ele não apareça em quantidade suficiente para causar sintomas.

Em nota, o Centro Gamaleya e o Fundo Russo afirmaram que realizam "um controle de qualidade rigoroso de todos os locais de produção da Sputnik V, confirmou que nenhum adenovírus competente para replicação (RCA) foi encontrado em qualquer um dos lotes de vacina Sputnik V que foram produzidos".

"Uma vacina precisa ter esses vírus muito controlados. Pode ter um [vírus replicante] a cada milhão, mas não pode ter milhares desses vírus, porque você não pode estar imunizando as pessoas com vírus ativos. Mas não seria um problema gravíssimo ter restos dentro da produção disso", explica o pesquisador.

"Nós passamos por essas infecções por vírus replicativos ao longo da vida e não morremos – a gente tem um resfriado e recupera. Por quê? Porque os adenovírus não são vírus que matem a gente. O adenovírus, ainda que se multiplicando, é um vírus tranquilo para o ser humano. O nosso corpo sabe reagir a esse vírus e sabe controlar. E o mesmo aconteceria com o vírus da vacina", afirma.

"Só que isso tem que estar controlado – o problema desta vacina foi que os russos não estão falando o quanto e como eles controlam e como eles sabem [a quantidade de vírus replicativo]", frisa o pesquisador.

O cientista da UFSC lembra, ainda, que o problema do vírus se replicando nunca vai ser tão grande quanto o da Covid.

"O adenovírus replicante faz um resfriado. Mesmo que fosse um caso extremo [com] a vacina, em todos esses supostos casos a pessoa nunca passaria tão mal quanto se pegasse Covid", frisa.

Um exemplo disso é que alguns vírus replicantes têm sido testados como vetores para vacinas contra a Covid – como o do sarampo e o da estomatite vesicular.

Oscar Bruna-Romero explica que usar um vetor não replicante como o adenovírus é uma garantia extra de segurança. No caso de grávidas, idosos ou pessoas com alguma deficiência no sistema imune – como as em tratamento para câncer, por exemplo –, as defesas do corpo já estão diminuídas. Por isso, usar um vetor que não pode se replicar e não causa doença, mesmo que leve, evita problemas.

Esse motivo é o mesmo pelo qual essas populações não recebem vacinas atenuadas, porque elas usam o vírus vivo. É o caso das vacinas do sarampo, rubéola, caxumba e febre amarela, por exemplo.

Outros pontos levantados pela Anvisa foram:

2) Os vírus replicantes podem permanecer por quanto tempo no organismo?

Esse foi um dos pontos levantados pela Anvisa, mas para o qual não houve resposta por parte dos desenvolvedores da vacina.

"Vírus replicativos podem estar aproximadamente duas, três semanas [no corpo]. Mas a doença que ele teria causado já teria acabado depois do 10º, do 12º dia. Só que o vírus ainda circula por lá – pode estar 3 semanas, pode estar um mês. Não posso colocar a mão no fogo e dizer 'daqui a 3 meses não vai ter nenhum'. O que eu posso dizer é que uma infecção por Ad5 dura aproximadamente uma semana", explica Oscar Bruna-Romero.

3) Em quais órgãos e tecidos esses vírus replicantes podem ser encontrados?

Um dos pontos levantados pela Anvisa foi se o Ad5 poderia causar danos ao sistema reprodutor ao se replicar.

"É verdade que ele pode aparecer nas gônadas [órgãos reprodutores], no intestino. É verdade. Alguns adenovírus, por exemplo, se especializaram no intestino e dão diarreias em crianças. Mas os adenovírus que a gente está usando são fundamentalmente respiratórios. E ainda não são replicativos. É muito difícil pensar que eles vão ficar por longos períodos no hospedeiro", afirma Bruna-Romero.

4) Podem causar algum dano em tecidos e órgãos em que podem estar presentes? Esses danos dependem da quantidade de vírus?

Esse também foi um dos pontos levantados pela Anvisa, mas também não houve resposta por parte dos desenvolvedores da vacina.

"Os vírus replicativos não deveriam se espalhar além do músculo, e, caso acontecesse, a resposta imunológica deveria controlar eles bem antes de que acontecesse nada mais grave. Vai infectar o músculo e, no máximo, se espalhar a tecidos anexos. Nem deveria se espalhar muito pelo corpo, porque essas vacinas são intramusculares – não são intravenosas nem subcutâneas. Um risco muito maior seria colocar essa vacina pela via intravenosa", explica o professor da UFSC.

"O nosso organismo é capaz de controlar quase qualquer vírus, desde que em pouca quantidade e que não tenhamos nenhum problema adicional", completa.

5) Os vírus replicantes podem ser transmitidos a outras pessoas?

"Se chegasse a ter uma dose suficiente de vírus replicante para fazer um resfriado, ele transmitiria, sim. O negócio é que nunca deveria chegar a uma dose que cause doença como o resfriado. Se chegou nessa dose, significa que todas as barreiras do sistema imunológico foram superadas – o vírus ganhou do sistema imunitáro", afirma Bruna-Romero.

6) Existe risco aumentado de eventos adversos? Tromboembólicos? Outros?

"Comparado com a vacina não replicante, certamente teria um risco, porque você teria risco de ter resfriado, dor de cabeça, febre, porque o que eles causam é isso – resfriado, febre, dor de cabeça –esses são efeitos adversos das vacinas", diz o pesquisador.

"O que nós temos que fazer é que essas vacinas, se tiverem vírus replicantes, tenham uma quantidade tão pequena que não cheguem a causar resfriado. Mas, se causam resfriado, não seria o fim do mundo. É melhor ter um resfriado de 3 dias e não ter Covid do que ter a chance de morrer", pondera o pesquisador.

7) A replicação significa que a vacina deu errado?

Não.

"Não deu nada errado na vacina Sputnik que não poderia dar na vacina da Janssen [Johnson] ou de Oxford – todas elas funcionam pelo mesmo mecanismo. Não deu nada errado na Sputnik V", reforça o pesquisador.

As três vacinas usam a mesma tecnologia: de vetor viral. Nesse tipo de vacina, um outro vírus, o adenovírus, funciona como um vetor do coronavírus: ele vai "carregar" o material genético do Sars-CoV-2 para dentro da célula.

No caso da Sputnik V – e, também, das outras duas vacinas citadas pelo pesquisador da UFSC – a expectativa é de que esse vírus vetor não se replique dentro das células, ou seja, que ele não seja capaz de multiplicar o seu material dentro delas. Daí vem o nome "vetor viral não replicante".

Essa recombinação ocorreu de maneira aleatória – e, por isso, poderia ocorrer em qualquer das outras vacinas de vetor viral. Por isso, é necessário que os cientistas façam o controle de qualidade da vacina para garantir que os vírus continuem sem a capacidade de se replicar.

8) Como o controle de qualidade é feito?

Quando usam o Ad5 como vetor de uma vacina, os cientistas retiram dele um gene – o E1 – que o torna capaz de replicar o seu material genético. Isso se chama deleção. Com essa deleção, os vírus perdem a capacidade de se replicar em todo tipo de célula – e isso inclui as nossas, explica Oscar Bruna-Romero.

Depois, para garantir que o mecanismo funcionou – que o vírus não está se replicando ou não se recombinou de alguma forma – os pesquisadores colocam esse vírus "deletado" dentro de uma célula. Se ele não se replicar, é porque a vacina passou no teste de qualidade.

Se ele se replicar, é porque ganhou de volta a capacidade de se replicar – e a vacina não passa no teste, diz o cientista da UFSC. Quando o vírus se replica, aparecem sinais na célula que permitem aos cientistas perceber essa replicação.

 

"O errado na vacina Sputnik V é que a Rússia não está explicando adequadamente como faz o controle de qualidade da vacina para que isso não aconteça", explica Bruna-Romero.

Mas ele frisa que isso não descarta a vacina: "Está com alguns problemas administrativos que realmente precisam ser resolvidos, mas jogar a vacina no lixo seria um desperdício", avalia.

"A gente pode até aproveitar a vacina da Rússia, desde que aqui no Brasil a União Química [farmacêutica que pretende produzir a Sputnik V em solo brasileiro] seja capaz de fazer o mesmo controle de qualidade que está fazendo a Janssen e que está fazendo a AstraZeneca", afirma o pesquisador.

"A vacina não tem que ter esses vírus replicativos – não foi feita para ter vírus replicativos. Eles só aparecem quando o controle de qualidade não está bem feito", reforça o cientista.


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