13/09/2024 às 20h16min - Atualizada em 13/09/2024 às 20h16min

Professor da UENP, Éverton Bernardes, dá entrevista exclusiva ao JCN sobre inclusão e ensino da Libras

Por Isa Machado
Professor Éverton Bernardes Wenceslau
Nesta semana a equipe do JCN realizava trabalho em campo, fazendo levantamento das principais necessidades da população siqueirense, e entrevistou uma pessoa surda, mas isso só foi possível porque a jornalista faz curso de licenciatura na UENP (Universidade Estadual do Norte do Paraná), que tem a disciplina de Libras. A entrevista foi um sucesso.
Dessa forma sentimos no próprio ambiente de trabalho a necessidade da Libras na vida das pessoas.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que pelo menos 800 milhões de pessoas no mundo sofrem alguma perda auditiva. Entre os 20 e 40 anos de idade, a surdez atinge 15% das pessoas. Já acima dos 70 anos, a prevalência pode chegar a 50%.
De acordo com a Sociedade Brasileira de Otologia (SBO), de cada mil crianças nascidas no Brasil, cerca de três a cinco já nascem com deficiência auditiva. Estima-se que, aproximadamente, 5,8 milhões de brasileiros tenham algum grau de surdez.
A surdez pode ter diferentes graus, tipos, ser congênita ou adquirida e afetar pessoas de qualquer idade sob variadas formas. Seus prejuízos são diversos e, comumente, provoca alterações na comunicação com grande impacto na saúde e qualidade de vida, no desenvolvimento acadêmico e nas relações de trabalho.
A Libras surge como a ferramenta mais importante para comunicação das pessoas com deficiência auditiva, ela promove a inclusão de mais de 10 milhões de pessoas surdas em todo o Brasil, segundo dados do IBGE
Dessa forma, quanto mais pessoas souberem a Libras, maior é a capacidade de a população surda se comunicar, ser entendido e se expressar. Ou seja, saber a Língua Brasileira de Sinais é um exercício de acessibilidade e inclusão. 
Quanto mais pessoas souberem se comunicar por meio da Libras, maiores as chances de pessoas surdas conseguirem vagas no mercado de trabalho e outras áreas de estudos, como universidades e escolas. 
Levando em consideração a importância da inclusão e do ensino de Libras, nós preparamos uma entrevista exclusiva com o professor Éverton Bernardes Wenceslau que é doutorando em Ensino pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino (PPGEn). Mestre em Ensino pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino (PPGEn) realizado na Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP campus de Cornélio Procópio sob a orientação da professora Dra. Letícia Jovelina Storto (2023). Especialista em Arte e Educação (2010); Educação Especial e Inclusiva (2014) e Libras - Língua Brasileira de Sinais (2015). Possui graduação em Letras - Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP (2008); graduação em Artes Visuais pela Universidade Metropolitana de Santos - UNIMES (2014); graduação em Letras Libras pela Faculdade Eficaz (2020); bacharel em Letras Libras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE (2021) e inicia em 2022 o curso de Pedagogia pelo Centro Universitário FAVENI. Atualmente é professor do processo seletivo simplificado (PSS) na modalidade de Educação Básica Especial, atuando como Intérprete de Libras e professor de apoio educacional especializado. Atualmente trabalha como docente pela Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP com a disciplina de Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Atuou como professor da educação especial, área da surdez - SEED/PR, com experiência nas funções de tradutor e intérprete de Libras/língua portuguesa e professor de Sala de Recursos Multifuncional - SRM-Surdez (2017-2023). Trabalhou em divulgação de Libras pelos programas PARFOR e pela UNOPAR com cursos voltados ao básico em Língua Brasileira de Sinais e ainda com a tutoria em rede online com o curso "Libras: aprenda sobre a língua brasileira de sinais" em parceria com a Educar em Rede (rede de cursos educacionais e de educação especial online).
Em 2019 inicia em parceria com a NSE de Educação da cidade de Ourinhos (SP) como professor de curso básico de Libras para alunos regulares com carga horária de 30 (trinta) horas e de professor tutor do curso intermediário de Libras para alunos regulares com carga horária de 40 (quarenta) horas. Ainda participa dos grupos de pesquisa "Leitura e Ensino" com a linha de pesquisa: Leitura e formação do professor para a inclusão pela UENP/CJ e do grupo "Diálogos linguísticos e ensino: saberes e práticas - DIALE" com a linha: Formação docente, recursos tecnológicos e linguagens pela UENP/CCP.

Confira abaixo a entrevista.
JCN -  Desde quando você atua como professor de Libras?
 Professor Éverton Bernardes - Em 2015 através de um processo seletivo para lecionar na educação especial pude ter a opção de trabalhar na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – (APAE) de Jacarezinho/PR ou na Associação Jacarezinhense de Reabilitação ao Deficiente Auditivo e Atendimento ao Deficiente Visual (AJADAVI) também de Jacarezinho/PR. Fiz minha opção neste último estabelecimento e fiquei imerso na quantidade de informações que vivenciei. Foi um ano atípico, pois ingressei em um período que se iniciou o ano letivo em uma greve de muito tempo. Com o retorno às aulas, mantive o contato com os alunos visuais e baixa visão e tive uma dificuldade de minha parte para conseguir conversar com os alunos surdos presentes. Este momento foi muito marcante pois realmente senti o que é ser um estrangeiro em seu próprio país, eu fui a minoria linguística naquele momento enquanto professor e não compreendendo meus próprios alunos.

JCN -  Você escolheu ser professor, por quê?
Professor Éverton Bernardes - Desde pequeno acreditei e gostava muito de estar entre canetas, lápis e giz. Ainda não tinha idade para saber escrever, mas gostava muito desses materiais. Com o passar o tempo eu fui admirando os professores e as professoras que tive e achava aquela profissão muito bonita. Ainda vivenciei a fase longe da tecnologia, não havia internet naquela época. Eram livros, e eu sempre gostei de ter livros por perto (até hoje), talvez por esse motivo de gostar de ler e escrever eu senti que me encaixaria perfeitamente nessa profissão.

JCN -  Quais os desafios de ser professor de Libras no Brasil?
Professor Éverton Bernardes - A Libras foi uma paixão instantânea desde que a conheci e a vivenciei. Eu tinha acabado de fazer 30 anos quando tive esse contato direto sem nunca ter sinalizado com algum surdo antes. Eram gestos ou eu não ficava próximo por não saber me comunicar. Após essa conexão e a aproximação com esses sujeitos eu senti que precisava estar ali e mudar a direção em minha profissão. Antes eu lecionava língua portuguesa e arte. Com a disciplina de Libras eu não havia encontrado materiais ou indicações de bons livros, pois ainda estava muito inexperiente em que lecionar e como. Foi por uma indicação de algum professor(a), e não me recordo agora, que me disse sobre um teste seletivo para trabalhar como tradutor e intérprete de Língua brasileira de sinais e de língua portuguesa (TILSP) na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) no ano de 2016. Eu fui sem expectativa alguma e haviam dois concorrentes. Talvez por essa circunstância de não sentir pressão em nenhuma etapa desse processo eu tenha conseguido ter êxito. Foram dois anos atuando como intérprete de um professor surdo universitário. Meu desenvolvimento com a Libras foi gigantesco e de uma profundidade incrível. Após a saída desse professor eu assumi as aulas em 2018 e continuo até o momento (2024) com a disciplina de Libras, foi com essa interação que fui aos poucos criando minha metodologia de ensino e como ensinar Libras sendo um professor bilíngue ouvinte.

JCN -  Você considera o Brasil um país inclusivo?
Professor Éverton Bernardes - Nosso país ainda precisa se desenvolver muito na área da inclusão e acessibilidade. O protagonismo das pessoas surdas e das pessoas com deficiência (PcD) com certeza um dia chegarão a estar muito mais acessíveis do que hoje. Eu acredito e quero ser positivo quanto a isso. Nas políticas públicas atuais, nossos documentos são muito bons, mas a prática e a formação ainda precisam ser revistas, ou melhor, inseridas com qualidade às pessoas que dela realmente precisam. A inclusão e a acessibilidade serão um procedimento comum um dia e quando isso for efetivado estaremos realmente considerados como um país inclusivo.

JCN -  Você acha que ainda existe muito preconceito com os surdos?
Professor Éverton Bernardes - A questão do preconceito com os surdos ainda ocorre, hoje em uma escala muito menor. Antigamente ao meio que eu cresci, sempre ouvia os adultos e demais pessoas chamando esses sujeitos de “bobos” ou coisas muito piores. Acreditavam que não eram capazes ou tinham um raciocínio lógico. Com a demanda e a visibilidade ganhando destaque, com as políticas públicas e a inserção de novos profissionais nessa área (professores, instrutores e intérpretes) esse preconceito foi sendo diminuído ao longo do tempo. As pessoas começaram a tomar ciência que a real dificuldade é a barreira da falta de comunicação entre ouvintes e surdos.

JCN -  Você já presenciou algum episódio de preconceito ou discriminação?
Professor Éverton Bernardes - Particularmente um fato me marcou, durante um momento, ao exercer a função de intérprete em um ambiente educacional. Uma aluna se virou de costas para um professor surdo e esse evento continuou pois ainda continuou falando muitas barbaridades e ofendendo o professor enquanto este não conseguia fazer a leitura facial ou labial dessa mulher em questão, todos da sala de aula ouviram as informações que eram ofensas a qualquer pessoa, mas se utilizou do mecanismo do bloqueio no contato visual para expor o que acreditava e o que achava desse profissional. Depois o professor soube o que foi reportado e, como intérprete, também passei as informações como aconteceram. De maneira informal poucas vezes tive (mas as experienciei também) quando interpretei simultaneamente o discurso de um aluno na educação básica fazendo o caminho da Libras para a língua portuguesa para uma professora que questionou algo ao aluno e ele passou as informações de maneira sinalizada. Logo após o fim desse diálogo do aluno com a professora, ela fez a referência me perguntando se realmente tudo aquilo que eu disse era parte do discurso do próprio aluno. Eu disse que sim e que pena a professora estar inserida tanto tempo com esse aluno incrível em sala de aula e ele ser velado ou podado muitas vezes por preconceitos como a falta de momentos e oportunidades que o aluno pode expor o que acha/ pensa sem os outros acreditarem no que ele diz.
 
 JCN - Em sua opinião, as políticas existentes são suficientes para o desenvolvimento da Libras no país?
Professor Éverton Bernardes - Ainda faltam políticas de inserção obrigatória da Libras em mais espaços educacionais. A obrigatoriedade em espaços acadêmicos e de ensino superior ainda restringe grande parte da população, a Libras precisa ser mais acessível e com muito mais profissionais formados e de excelência. Ainda fico muito crítico com alguns profissionais que estão junto aos surdos, mas que não tem o domínio linguístico para, com qualidade, exercer a função. Tendo uma maior democraticidade e com políticas públicas federais, ou mesmo as estaduais ou municipais (as leis orgânicas) para que a inclusão da Libras nas escolas fosse obrigatória desde os anos iniciais. Mas ainda reforço o crivo de como inserir essas informações para os alunos e população, pois ainda a Libras é vista como uma “língua inferior” e que os “gestos” realizados devem significar algo concreto. As escolas precisam de formações e que os profissionais hoje pudessem sempre estar mais próximos desses espaços e inserir cursos, formações, palestras e demais momentos e oficinas para que a Libras seja a língua de comunicação entre surdos e ouvintes de maneira natural. Seria um sonho ter a disciplina obrigatória em todos os ambientes escolares através das políticas públicas.
 
JCN -  Qual a principal barreira para a inclusão?
Professor Éverton Bernardes - A barreira para a inclusão com os sujeitos surdos ainda é a falta de comunicação. Ainda faltam intérpretes nos espaços que o surdo esteja inserido. Ainda falta acessibilidade em espaços onde surdos participem em todo o tipo de atividades. Ainda falta acesso nos meios de comunicação. A barreira comunicacional é grave para pessoas que precisam manter relações, não há como uma pessoa ser compreendida ou que uma informação chegue até um sujeito através de uma forma comunicativa. A inclusão precisa ser efetivada e deve partir de todos, não devemos esperar algo acontecer, o importante e o necessário é realmente lutar por direitos e por espaços de protagonismo e por espaços de fala. Ainda podemos avançar muito, nos últimos anos a língua de sinais ganhou visibilidade através do Exame nacional do ensino médio (ENEM) e ficou evidente que a grande maioria da população desconhece o que é a Libras e o sujeito surdo, também, desde a pandemia de 2020 vem ganhando repercussão nas lives e nas plataformas de acesso em vídeos que são assistidos por milhões de pessoas diariamente, mas a prática em si ainda precisa ser revista.

JCN -  Qual foi a experiência mais marcante que você teve com um surdo, ao se comunicar com ele?
Professor Éverton Bernardes - O contato com surdos é fascinante quando você está no processo de aprendizagem. Eu como ouvinte e possuidor da língua portuguesa como minha primeira língua escolhi a Libras como minha segunda língua. No meu processo de aprendizagem eu fui “abraçado” por excelentes surdos que sempre vinham até mim para conversar, mesmo eu sabendo o básico do vocabulário. Nesses primeiros meses eu realmente possuía o mínimo para uma conversação simples. Mas me sentia realizado quando eu entendia o contexto da conversa ou quando os surdos começaram a me relatar questões particulares e sofrimentos internos por não ter acesso a língua em espaços onde os ouvintes estão. Foi ainda em 2015, e eu ainda não possuía a proficiência da língua de sinais que eu tive a clara ideia que não tinha o domínio da Libras, mas fui prestar com muita ousadia nesse ano a última avaliação de proficiência realizada na Universidade Estadual de Maringá (UEM) para o Exame Nacional para Certificação de Proficiência no Ensino da Língua Brasileira de Sinais (Libras) conhecido como “ProLibras”. No momento que sai do carro e olhei do alto do estacionamento várias pessoas sinalizando ao mesmo tempo, cerca de 400 pessoas simultaneamente, eu senti que aquilo era mágico e que não sabia se meu lugar era ali, mas fui em frente e ao passar pelos surdos e ouvintes sinalizando a todo momento eu achei fascinante poder estar inserido naquele contexto e ter essa profissão para minha vida.
Ainda quero agradecer a oportunidade, o carinho que hoje sou lembrado por conta de a Libras ter entrado em minha vida. Sempre comento que não fui eu que escolhi a Libras, foi ela que me abraçou junto à comunidade surda.
Hoje minha vida mudou por estar inserido neste contexto e por estar com os surdos diariamente, o início não foi fácil e até hoje eu estudo todos os dias um pouco mais. Concluí duas graduações em Libras, uma pós-graduação em nível de especialização, ano passado terminei meu mestrado em ensino com a Libras em minhas pesquisas e ingressei no doutorado em uma língua que há nove anos vem fazendo parte de minha vida.
Fico apenas imaginando se eu tivesse essa oportunidade lá atrás quando criança, e por isso seria tão fundamental que todos tivessem o acesso à ela o quanto antes.
 
 
 
 

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