14/10/2019 às 16h36min - Atualizada em 14/10/2019 às 16h36min

"A conta 'mulher, trabalho e filhos', simplesmente não fecha", afirma a psicanalista Vera Iaconelli

Em entrevista à CRESCER, a psicanalista que acabou de lançar o livro 'Criar filhos no século XXI', afirma: "As mulheres que estão tentando fazer com que essa conta feche estão deprimindo, somatizando e adoecendo"

revistacrescer.globo.com – Sabrina Ongaratto
Segundo psicanalista, a conta mulher, trabalho e filhos não fecha! (Foto: Pexel)
"Nunca existiu uma parentalidade livre de desafios. Desde que mundo é mundo, os pais se queixam das crises que os filhos trazem. Então, não devemos nos amendrontrar diante dos desafios, mas tentar tirar proveito disso", diz a psicanalista, mestre e doutora em psicologia, Vera Iaconelli, que também é direitora do Instituto Gerar, em São Paulo. Mas quais são os desafios dos pais da atualidade? "Eu os vejo cheios de informação, mas com pouquíssimo espaço para reflexão", afirma.
 
Em uma era onde todos opinam, postam e criticam, a pretensão da psicanalista ao escrever o livro Criar filhos no século XXI é provocar uma inquietação. "Não um estresse, mas uma possibilidade de pensar-se, valorizar-se, reconhecer-se, ser mais honesto com o que você pode e não com o que acha que deveria fazer. É um antimanual. A tentativa não é de ditar regras, mas mostrar um pouco do que está se passando no mundo e como cada pai — na sua singularidade, na sua família, no seu arranjo — pode lidar com esses novos desafios", completa. Em entrevista exclusiva à CRESCER, ela fala sobre o papel da mulher, o novo lugar do homem e até mesmo sobre as tão temidas birras das crianças.
 
C: A ‘culpa’ é um dos principais males dos pais da atualidade, por quê?
V: Essa culpa passa por duas questões. Primeiro, pela dificuldade dos pais em admitirem que eles têm, sim, sentimentos ambivalentes em relação aos filhos. É importante lembrar que todas as relações humanas têm ambivalência. Sentir raiva ou até se arrepender de ter tido filhos — em alguns momentos — é perfeitamente normal. Nossos pais também sentiram isso e continuamos os amando. São sentimentos que fazem parte da vida. No entanto, em geral, pais e mães têm dificuldade em admitir que sentem isso. Em segundo, porque, nesse momento, a nossa cultura sobrecarrega os pais de responsabilidades. E não estamos falando apenas sobre garantir saúde, educação e estar presente, mas também as responsabilidades onipotentes, de prever o que vai acontecer, de garantir coisas que não são possíveis de serem garantidas.
 
 
C: Sobre as birras, os pais é que têm ‘medo’ de impor limites aos filhos ou as crianças estão mais atrevidas?
V: As crianças têm dificuldades para lidar com os limites porque os pais não deixam os filhos se frustrarem, não deixam que eles sintam raiva, tentam controlar seus humores a qualquer custo. A birra é um momento em que a criança recusa tudo o que vem dos pais, e eles precisam aprender a segurar a onda — não castigar, não premiar, mas colocar limites claros, sem dar atenção demais pra esses momentos de revolta. Os pequenos têm que aprender a lidar com a experiência da birra.
 
C: Para ser bem sucedida profissionalmente, a mulher precisa abrir mão de ter filhos. Se quer filhos, o trabalho fica em segundo plano. É possível fechar essa conta?
V: A conta 'mulher, trabalho e filhos', simplesmente não fecha. E as mulheres que estão tentando fazer com que feche estão deprimindo, somatizando e adoecendo. Então, precisamos mudar nossos combinados: a forma como a gente encara o trabalho, como o trabalho nos encara, como as políticas públicas encaram as mulheres e como os homens encaram as mulheres. Elas precisam começar a lutar por direitos em uma sociedade profundamente desigual. Se continuarem tentando dar conta de algo que não é justo, só estarão preservando essa injustiça.
 

Psicanalista Vera Iaconelli (Foto: Anna Paula Bogaciovas)
 
C: Por que o sexo muda após a chegada dos filhos?
V: São diversos fatores que afetam a relação sexual de um casal após os filhos. Tem o fator logístico, em que homens e mulheres estão mais cansados, com uma jornada a mais de trabalho — que são os cuidados com os filhos —, e se torna mais difícil ter momentos a sós. Mas tem, também, uma questão de reorganização da libido, da relação dos dois com o próprio corpo, um com o outro, com o novo papel e, muitas vezes, com questões inconscientes, como inibições ao fato de se tornar pai e mãe que, na nossa cultura, cria um certo ruído. Para algumas pessoas, o simples fato de não ter divisão de tarefas igualitária, pode causar um ressentimento, afetar a relação e resultar em uma falta de interesse sexual. Então, são diversos fatores que devem ser ultrapassados para que se possa retormar uma vida sexual — que não precisa ser igual, pode ser até melhor do que antes.
 
C: A paternidade mais participativa já está em curso. No entanto, as mulheres ainda ficam com a carga mental da família. Como equilibrar essa balança?
V: A carga mental só começou a ser fomulada como tal, na medida em que os homens começaram a dividir as tarefas. As mulheres sentiram que, mesmo com essa divisão, ainda assim, elas ficaram sobrecarregadas, o que também gera muito ressentimento. Então, estão começando a pleitear uma melhor divisão nesse quesito também. No entanto, isso implica em reconhecer que, se os homens vão pensar, decidir e planejar, terá de ser do jeito deles e elas vão perder um certo 'poder'. E muitas mulheres têm dificuldades em abrir mão disso. Então, não é somente uma mudança de posição do homem, mas também da mulher, que é de delegar.
 

Capa do livro recém-lançado de Vera Iaconelli (Foto: Reprodução)
 

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