22/04/2019 às 15h52min - Atualizada em 22/04/2019 às 15h52min

Por que ainda existe um estigma em torno de mulheres que não querem ser mães?

vogue.globo.com - Dra. Peggy Drexler – Vogue Internacional
Mulheres que não querem ter filhos são vistas como "ameaçadoras" (Ilustração: Tom Peake)
Gina esperou anos para que seu instinto maternal entrasse em cena. Com certeza, deve ter pensado: “vai acontecer”. Mas embora gostasse de crianças, nunca sentiu necessidade de ter uma - mesmo depois de conhecer o homem com quem iria se casar ou quando seus amigos começaram a ter seus próprios filhos.
 
Agora, aos 42 anos, ela está entrando nos últimos anos para reprodução e, embora tenha dias em que brinque com a preocupação de se arrepender no futuro, ela também fica feliz por simplesmente deixar que essa fase termine. “Se eu fosse uma pessoa que quando visse um bebê quisesse 'devorá-lo’ como se fosse um cupcake, talvez tivesse feito isso e nunca teria pensado duas vezes para ter um”, diz ela, que pediu que sua identidade verdadeira não fosse revelada. “Mas como não tive esse tipo de reação, eu simplesmente não tinha certeza se queria desistir da vida sem filhos, com viagens frequentes, roupas lindas, manhãs de domingo dormindo...”
 
As amigas falavam cheias de ressentimento sobre maridos que não compartilhavam o suficiente da carga de trabalho. Seu próprio casamento era bem sólido e ela queria que continuasse assim. "Gosto de crianças", diz. "Mas elas são muitas e para a vida toda".
 
Gina pode ser a única de suas amigas sem filhos, mas certamente não está sozinha. Taxas de natalidade estão diminuindo em todo o mundo à medida que a ambivalência materna aumenta. Em 2017, um estudo do Global Burden of Disease informou que o índice global de fertilidade foi reduzido pela metade desde 1950, enquanto uma análise de 33 estudos de intenção de fertilidade em países desenvolvidos descobriu que cerca de 1/5 a 1/3 das mulheres que engravidam não têm certeza se na verdade querem ou não um bebê.
 
A taxa de natalidade dos EUA está no nível mais baixo de todos os tempos. O mesmo acontece com a Coreia do Sul, onde, no ano passado, pela primeira vez, a taxa caiu para menos de um filho por mulher. No início deste mês, o jornal Financial Times informou que o número de novos nascimentos na China caiu pelo segundo ano consecutivo, desde que o país revogou sua política de filho único.
 
As razões dadas pelas mulheres variam e crianças são caras: um relatório de USDA de 2017 descobriu que os pais americanos gastam, em média, mais de 230 mil dólares com custos de filhos, do nascimento até os 17 anos de idade - não incluindo a faculdade. E eles também são ruins para o planeta: a ciência tem afirmado há muito tempo que ter um filho é praticamente a pior coisa que você pode fazer pelo meio ambiente. Um estudo da Suécia descobriu que ter menos um filho por família pode economizar cerca de 60 toneladas de emissões de carbono por ano.
 
O aumento do número de mulheres trabalhadoras - e provedoras - em todo o mundo também fez com que muitas ficassem relutantes em deixar empregos que dificilmente estarão lá quando retornarem. No entanto, muitas mulheres simplesmente não querem ter filhos por uma razão que outras pessoas possam ver como, digamos, menos prática. "Meus amigos me descreveriam como a pessoa mais adequada para a maternidade", diz Lotte Andersen, uma artista londrina de 29 anos. "Não acho que ser mãe seja algo pesado e sou ótima em ser responsável. Minha mãe morreu quando eu era jovem, então cuidei dos meus irmãos e sempre dou uma mãe das minhas amigas. Mas faço tudo o que quero: transo com homens e mulheres e sou livre de muitas maneiras que considero importantes e essenciais para ser quem eu sou”.
 
Lotte está ligando de Lima, onde está fazendo uma residência artística. É apaixonada por seu trabalho e ralou para chegar onde está - e ainda há mais lugares que quer ir. "Parece egoísta e odeio dizer isso, mas sinto que preciso ser eficiente agora", diz ela. “Desde pequena, me incomodava o fato de que eu tivesse que desistir de oito a dez anos da minha vida, pelo menos, caso tivesse uma criança. Meu trabalho é meu filho.”
 
No entanto, enquanto se sente empoderada em sua decisão e com sua vida, ela também não consegue evitar o sentimento de estar sendo julgada (o que provavelmente, acontece).
 
Mesmo quando cada vez mais mulheres estão optando por não ter filhos - e a ideia de que há diferentes maneiras de formar uma “família” tornou-se cada vez mais comum - ainda existe um estigma em torno de mulheres que não têm e talvez até nas que sentem o desejo materno. As mulheres que não fazem essa opção são, de alguma forma, "ameaçadoras", como Andersen coloca. Elas desafiam nossas expectativas sobre o que as mulheres fazem ou “deveriam” querer. "Muitas pessoas pensam que as mulheres que não querem filhos não gostam de crianças, o que quase nunca é o caso", diz a psicóloga Sarah Gundle, diretora-adjunta do Octave, centro de saúde comportamental de Manhattan. “Gostar de crianças ou não raramente é a razão pela qual atendo pacientes que decidiram não ter filhos. As mulheres hoje têm mais opções e para muitas, é uma escolha como qualquer outra.
 
Mas a ideia de as mulheres terem filhos ainda está tão profundamente arraigada em nosso consciente coletivo, que aquelas que escolhem não tê-los frequentemente são vistas com uma certa suspeita”.
 
Ou pior: um estudo de 2017 publicado na revista Sex Roles descobriu que muitas pessoas consideram a decisão de abandonar a paternidade não apenas anormal, mas também moralmente errada. “Mulheres que optam por não ter filhos provocaram indignação moral - raiva, nojo, decepção - em relação a pessoas com filhos”, diz a autora do estudo, Dra. Leslie Ashburn-Nardo. “Elas também foram vistas como pessoas menos realizadas psicologicamente”. Em outras palavras, diz ela, a maioria de nós espera que pessoas que não têm filhos por opção vivam vidas “incompletas” e “infelizes”.
 

Um estudo publicado no American Journal of Sociology descobriu que ter filhos torna as pessoas menos realizadas do que quem decide não tê-los (Foto: Tom Peake)

Um estudo publicado no American Journal of Sociology descobriu que ter filhos torna as pessoas menos realizadas do que quem decide não tê-los (Foto: Tom Peake)


Um estudo publicado no American Journal of Sociology descobriu que ter filhos torna as pessoas menos realizadas do que quem decide não tê-los (Foto: Tom Peake)
 
Em uma reportagem da revista online chinesa Sixth Tone, Fan Yiying escreve sobre o aberto desprezo chinês pelos casais que escolhem não ter filhos. Até mesmo a conselheira matrimonial citada na matéria "orienta seus clientes a ter filhos, chamando a parentalidade de 'uma experiência de vida indispensável' e argumentando que isso não deve impedir um trabalho e outras metas da vida".
 
A ironia, como aponta a Dra. Gundle, é que ter filhos não deixa as pessoas mais felizes. Um estudo de 2016 publicado no American Journal of Sociology analisou famílias em 22 países e descobriu que ter filhos torna as pessoas menos realizadas em comparação com as pessoas que não os têm, fenômeno que os pesquisadores apelidaram de “lacuna da felicidade dos pais”.
 
No entanto, segundo a Dra. Ashburn-Nardo, “como sociedade, temos a tendência de supor que ter filhos é mais do que a maioria das pessoas faz - é o que as pessoas devem fazer. Isso poderia ser eficaz para uma mulher sem filhos por opção afastar o preconceito”, continua. “Mas isso por si só não é muito justo – por exemplo, não costumamos perguntar aos pais por que eles escolheram ter filhos- então por que queremos questionar os motivos dos que não são pais?”.
 
Talvez seja porque alguns pais questionam suas próprias razões. Dra. Gundle diz que existem muitos pacientes com sentimentos variados sobre filhos depois de já tê-los, muitas vezes em uma reação à pressão sobre as mulheres -e mães em particular - para serem perfeitas, assumir responsabilidades demais e sempre priorizar as crianças. "A ambivalência materna é comum, mas muito raramente falada por causa da vergonha relacionada a isso", diz Gundle. "Mas a paixão atual por criar filhos", com razão, "acaba sobrecarregando os pais num grau alarmante".
 
Lotte Andersen, por sua vez, acha que sua decisão de não ter crianças é uma das atitudes mais responsáveis e menos egoístas que já tomou. "Amo muitas coisas mais do que eu", diz. “Só consigo pensar que estou no topo, sou educada e superprivilegiada. Por que não levar esse privilégio a sério? Se posso viajar para o Peru e fazer a arte que eu quero, usarei meu tempo melhor para fazer isso do que para amamentar. Só queria que mais garotas soubessem que foi uma opção. Acho que elas precisam enxergar mulheres que decidem fazer outras coisas. Um dia, quero ser lembrada assim: "Tia Lotte teve uma vida maravilhosa."
 
A Dra. Peggy Drexler é psicóloga e cineasta de Nova York. Ela é autora de dois livros sobre gênero e família e o próximo enfocará a cultura da competição feminina. peggydrexler.com

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