03/12/2018 às 15h41min - Atualizada em 03/12/2018 às 15h41min

Estilista cria projeto de moda inclusiva: "Deficientes não podem estar ali só para cumprir cota"

Michele Simões está á frente do Meu Corpo É Real, plataforma que conta com palestras, consultoria, workshops e peças acessíveis

revistaglamour.globo.com – Fernanda Frozza
Michele Simões é criadora do Meu Corpo É Real (Foto: Ariana de Lima e Gabriel Bertoncel)
Já imaginou como seria trocar de corpo da noite para o dia? Foi o que aconteceu comigo. Em um momento, decidia o que queria fazer e para onde ir. No outro, dependia de uma pessoa para me virar na cama e me vestir. Meu nome é Michele Simões, tenho 36 anos, nasci em São Bernardo do Campo (SP) e fiquei paraplégica aos 24. Mas quero começar falando da minha infância. Desde criança, sou apaixonada por moda. Lembro de passar horas customizando roupas... Esse hábito aflorou na adolescência, naquela fase em que a gente está se descobrindo, sabe?
 
Achei que minha família não aceitaria bem se dissesse que queria ser estilista. Um dia, porém, conversando com meu pai, ele sugeriu: “Por que você não estuda moda?”. Era o que faltava para seguir em frente. Para mim, as roupas sempre foram uma ferramenta de expressão. E foi com esse pensamento que me formei na Universidade Estadual de Londrina, em 2005.
 
Porém, sempre soube que essa era uma área difícil para trabalhar, com vagas restritas. E, como em São Paulo tinham mais oportunidades, me mudei para a capital em 2006, aos 24 anos. O objetivo era dar um pontapé na carreira, juntar uma grana e realizar o sonho de fazer intercâmbio.
 

Michele Simões é criadora do Meu Mundo É Real (Foto: Ariana de Lima e Gabriel Bertoncel)

Michele Simões é criadora do Meu Mundo É Real (Foto: Ariana de Lima e Gabriel Bertoncel)


Michele Simões é criadora do Meu Corpo É Real (Foto: Ariana de Lima e Gabriel Bertoncel)
 
No segundo mês na cidade, saí de carro à noite com uma amiga. Na volta, de madrugada e no banco do passageiro, ela fez uma conversão proibida – daquelas que a gente pensa “ah, não tem ninguém a essa hora, vamos por aqui que é mais rápido” – e, pah!, sofremos um acidente.
 
No caminho para o hospital, eu já sabia que estava paraplégica e que minha vida tinha mudado. Tive traumatismo raquimedular [lesão na coluna vertebral que danifica a medula espinhal], com três vértebras esmagadas. Também quebrei o externo, osso do tórax, e uma costela.
 
Novos rumos
Foi um baque. Parecia que eu tinha voltado a ser um bebê. Passei três meses no hospital me recuperando e pensando o que seria de mim dali para frente. É claro que ninguém sonha passar pelas dificuldades que uma pessoa com deficiência enfrenta, mas decidi viver um dia de cada vez. Acordava e pensava: “O que eu posso fazer com o que tenho hoje?”. Tive um processo de reabilitação muito lento, por causa da hipotensão [pressão arterial mais baixa que o esperado] eu desmaiava com muita frequência. Quando ouvi que teria de passar a vida inteira deitada por causa disso, decidi ir à luta. Em quatro anos de batalha, consegui sentar. Parece pouco, mas nas condições que vivia, foi uma grande vitória.
 
Sempre ouvi da minha mãe que precisava me amar, independente do que acontecesse. Muito por isso, nunca tive problemas de autoestima. Acreditava que se me sentisse bem, ninguém provaria o contrário. E assim, entendi meu novo corpo. Ao mesmo tempo, refletia sobre o que poderia fazer profissionalmente. Sabia que, se antes as vagas eram restritas, agora seria praticamente impossível trabalhar com moda. Na faculdade, nunca tinha ouvido falar em corpo fora do padrão. Só fui pensar nisso ao chegar no extremo oposto.
 

Michele Simões é criadora do Meu Mundo É Real (Foto: Ariana de Lima e Gabriel Bertoncel)

Michele Simões é criadora do Meu Mundo É Real (Foto: Ariana de Lima e Gabriel Bertoncel)


Michele Simões é criadora do Meu Corpo É Real (Foto: Ariana de Lima e Gabriel Bertoncel)
 
Quando finalmente consegui ficar sentada, em 2010, criei uma marca de bolsas, a Exclusivex, porque achava que era um acessório democrático. Depois do acidente, pensar em roupas não fazia o menor sentido. A gente cresce olhando as pessoas em pé, desfilando e posando. Na cadeira, era estranho. Não tinha referência. A despedida do meu guarda-roupa foi bem difícil.
 
A primeira vez que consegui me arrumar sozinha e encontrar meu namorado na garagem, chorei muito. Escolhi o look, senti o tecido, o cheiro... aquilo me emocionou. Foi um resgate do meu corpo.
 
Com o tempo, fui ganhando autonomia e voltei a me sentir capaz. Tanto que, em 2013, a ideia de fazer um intercâmbio, que desde o acidente parecia impossível, voltou com tudo. Decidi ir para Boston, nos EUA, estudar inglês. Meu namorado, o Thiago, que está comigo desde antes do acidente, foi junto, mas, apesar da companhia, busquei minha independência. Ia sozinha para a escola, aprendi a lidar com os olhares na rua e a me virar. Na época, não encontrava dicas para pessoas com deficiência – isso porque somos mais de 45 milhões só no Brasil! Foi quando decidi criar o blog Guia do Viajante Cadeirante, em que dividia tudo o que descobria, desde serviços até acomodações e restaurantes com acessibilidade.
 
Percebi que estar na cadeira de rodas não é uma barreira tão grande quando o país é apto a te receber. Voltei para o Brasil com outra cabeça. Muita gente me perguntava como era viajar com a sonda, como fazia para tomar banho e para viajar de avião. Meu blog ganhou repercussão e fui chamada por uma agência em SP para viajar para Toronto e Montreal, no Canadá, e mostrar o ponto de vista de uma cadeirante. No meu último dia em Toronto pedi para que uma mulher tirasse uma foto minha, bem rapidinho mesmo. Aí ela disse: “Sabia que tem uma exposição de moda inclusiva aí dentro?”. Tinha pouco tempo, mas não acredito em acaso. Encarei como um recado e fui visitar. Quando olhei aquilo, me arrepiei inteira, foi um divisor de águas! Eram peças da IZ Adaptive, marca canadense que desenvolve modelagens para pessoas com deficiência, mas que qualquer um pode usar. É nessa moda que acredito.
 

"Quero que vejam quem as pessoas são antes de olharem a deficiência que elas têm" (Foto: Ariana de Lima e Gabriel Bertoncel)

"Quero que vejam quem as pessoas são antes de olharem a deficiência que elas têm" (Foto: Ariana de Lima e Gabriel Bertoncel)


Michele Simões é criadora do Meu Corpo É Real (Foto: Ariana de Lima e Gabriel Bertoncel)
 
Meu corpo é real
Voltei para casa com um comichão. Entendi que a moda era para mim, sim! Depois de dividir minha história, ganhei bolsa na Belas Artes para fazer pós-graduação em Comunicação e Cultura de Moda, em 2015. Em seguida, parti para uma especialização em Consultoria de Imagem na Escola Panamericana. Desta vez, minha experiência foi completamente diferente da faculdade, afinal inclui diversidade nas aulas. Sugeri montar o Fashion Day Inclusivo e reuni um time de alunos em hospitais de reabilitação em São Paulo para uma imersão. Fizemos uma série de entrevistas com os pacientes e apresentamos soluções para que as roupas tivessem um caimento melhor. A autonomia é um grande problema e, por isso, o jeans é o campeão de reclamações. O tecido é rígido, fica difícil subir a calça, abotoar, puxar o zíper... mas dá para repensar a modelagem e otimizar o produto.
 
No meu trabalho de conclusão de curso, fiz um minidocumentário chamado Meu Corpo É Real. Reuni um grupo com diferentes tipos de deficiência para contar suas histórias. Foram tantos compartilhamentos nas redes sociais que fui chamada para fazer parte do TED [conferência conhecida ao redor do mundo por espalhar ideias inovadoras em várias áreas] e também do South by Southwest [evento no Texas que reúne projetos visionários de artistas, executivos e influenciadores]. Ali entendi o quão importante era falar sobre o assunto. Meu Corpo É Real virou uma plataforma de moda inclusiva. Um projeto para mostrar para pessoas e empresas que deficientes físicos não podem estar ali só para cumprir cota e aparecer apenas no Dia da Luta Contra Deficiência, em 21 de setembro. Passei a ser chamada para dar palestras, continuo liderando o Fashion Day Inclusivo, faço consultoria e também ministro workshops em empresas e faculdades. A ideia é ensinar como esse corpo funciona e como desenvolver peças acessíveis.
  
Hoje tenho total autonomia para me vestir, mas foi um longo caminho até aqui. Claro que existem peças cujo caimento não fica legal e também tive que me despedir de vez dos meus saltos enormes (que eu amava), mas aprendi o que funciona para mim. Sou bem resolvida com o meu corpo, embora ache que o assunto que não está 100% esclarecido no mundo. Sou uma pessoa normal, que estuda, trabalha, namora, viaja e gosta de se vestir bem, mas muitas vezes me enxergam apenas como uma coitada na cadeira de rodas. E minha batalha é justamente essa: quero que o mundo veja quem as pessoas são antes de olhar a deficiência que elas têm. E sei que a gente vai chegar lá.
 

Michele Simões é criadora do Meu Mundo É Real (Foto: Ariana de Lima e Gabriel Bertoncel)

Michele Simões é criadora do Meu Mundo É Real (Foto: Ariana de Lima e Gabriel Bertoncel)


Michele Simões é criadora do Meu Corpo É Real (Foto: Ariana de Lima e Gabriel Bertoncel)
 
Fotos: Ariana de Lima e Gabriel Bertoncel
Beleza: Mauro Marcos

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