02/07/2018 às 10h02min - Atualizada em 02/07/2018 às 10h02min

Adeptos de retiros de silêncio contam como o processo ajuda a filtrar os excessos da nossa era

A percepção e o entendimento do próprio ser é um dos prontos cruciais da experiência

oglobo.globo.com - Talita Duvanel
Retiros de silêncio ajudam a ter entendimento do eu de cada um - Shutterstock
Em 1993, o advogado e explorador norueguês Erling Kagge juntou seus casacos e foi para a Antártida em busca do reconhecimento como o primeiro homem a completar a travessia do Polo Sul sozinho. Caminhou por 50 dias, a -40ºC, sem ouvir nada além de sua própria respiração e seus batimentos cardíacos. A única companhia era o mais profundo silêncio exterior. Vinte e quatro anos depois, inspirado pelo fato de as três filhas adolescentes viverem em volta de computadores, celulares e tablets, resolveu contar suas experiências no livro “Silêncio na era do ruído” (Ed. Objetiva). O resultado foi um estouro de venda em países da Europa, até ser editado também por aqui neste ano, um sinal claro de que há muitas pessoas tentando redescobrir a possibilidade de “calar” o excesso de sons e informações que as rodeia e que mina atenção tanto nas tarefas mais simples quanto nas mais complicadas.
 
— Silêncio é entrar de cabeça no que se está fazendo, experimentar em vez de pensar demais; e ruídos não têm a ver apenas com sons. São relacionados a distrações, expectativas e existência por meio da vida de outros ou da mídia, via telefones celulares e telas de computadores — diz ele, aos 55 anos, em entrevista por e-mail. — Hoje, as pessoas estão em busca de coisas reais, e, com meu livro, quis escrever sobre o silêncio que está conosco o tempo todo e que não requer técnicas ou custe dinheiro.
 
De fato, em meados do século XX, entendíamos como ruídos a definição clássica do dicionário (“barulho, estrondo”, diz o Aurélio), e eles vinham dos canos de descarga e das buzinas dos carros ou do alto volume de um rádio ou, quiçá, de uma TV de um vizinho. Estar em silêncio era se colocar longe disso, como num fim de semana no meio do mato, onde nem uma palha de aço na ponta da antena fazia um televisor pegar. Hoje, os carros estão mais silenciosos e os aparelhos de comunicação até fazem menos barulho stricto sensu (alguém aí falou em fones de ouvido?), mas os celulares, por mais que nem toquem, piscam o tempo todo com alertas de notícias, mensagens de WhatsApp e notificações de dezenas de aplicativos que existem em cada smartphone. Agora, até onde o vento faz a curva existe uma rede 3G (senão 4G) que possibilita acesso ao Instagram para ver os detalhes invejáveis da vida dos amigos e até dos inimigos.
 
O neurocientista Ivan Izquierdo, coordenador do Centro de Memória do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul e autor do livro “Silêncio, por favor” (Ed. Unisinos, 2012), concorda com Kagge sobre o fato de que vivemos uma “era do ruído”, que muitas vezes tem a ver com a infinidade de referências que existem, por exemplo, num simples ato de buscar uma notícia.
 
— Você tenta ler um jornal por cinco minutos, ou uma informação em particular, e vai ver a quantidade de ruídos que aparecem e como precisa se concentrar — diz Ivan. — O mundo está cada vez mais cheio de inutilidades, principalmente por causa da tecnologia. Veja a moda agora das informações falsas (fake news).
 


Flavia Pires: retiro de silêncio na Índia - Leo Martins / Agência O Globo
 
Se nem todo mundo tem o pique e a coragem para encarar uma Antártida e seu silêncio, o jeito é investir em experiências que pregam o total desligamento das interferências sonoras, de informações e da própria voz. É o caso da blogueira Flavia Pires, que, há quatro anos, embarcou para um ashram, na Índia. Dos 12 dias no retiro, em cinco deles ela não pôde dar uma palavra sequer.
 
— Fiz trabalho voluntário, oito horas de meditação diárias e voto de silêncio. Antes de se calar por completo, você prepara o seu corpo para isso com diversas atividades — conta ela.
 
A “desintoxicação” dos ruídos foi total: Flavia e seus companheiros não podiam ouvir música, escrever ou ler (a única coisa que leu foi o bilhete de uma amiga, no segundo dia de voto, que apenas dizia: “fui”). Contatos visuais também eram proibidos.
 
— Nas primeiras 24 horas, você para de falar, mas sua mente ainda não está no mesmo ritmo. É um turbilhão de ideias, imagens, informações do passado e do presente e especulações sobre o futuro. Mas, no decorrer do período, você vai se conectando consigo mesmo e consegue se enxergar como um espectador de si mesmo. Isso dá um conforto inacreditavelmente bom — relembra Flavia, que repetiu a experiência em outros lugares do Brasil. — Você deixa de remoer o passado e tentar prever o futuro e começa a viver só o presente, minuto a minuto.
 


A terapeuta Carla Ayd: silêncio por 21 dias - Leo Martins / Agência O Globo
 
A percepção e o entendimento do próprio ser é um dos prontos cruciais de uma experiência de silêncio, diz a terapeuta especializada em regressão e meditação Carla Ayd, que já ficou 21 dias no esquema de zero comunicação. Ali, acontece o que ela chama de “desidentificação”, algo como entender o que pertence a sua essência ou o que é apenas uma programação incapacitante da mente.
 
— Num retiro de silêncio, você se “desidentifica” dos pensamentos que não têm nada a ver com você, e de uma forma muito maior. Quando você sai de uma experiência assim, se torna um observador da voz que achava ser sua — diz Carla.
 
Por sugestão da terapeuta, a relações-públicas Paula Severiano Ribeiro começou a meditar e procurar programas de silêncio. Católica (uma prova de que tais ideias não têm necessariamente a ver com religião), ela se considera uma pessoa “acelerada” e achava que não seria capaz de passar tanto tempo falando apenas com a mente. Ledo engano. Ela já esteve 15 dias em voto de silêncio absoluto.
 
— Odiava ficar qualquer minuto sozinha, hoje amo. Acho que tem a ver com o amor que se tem por si mesmo e com passar a curtir a própria companhia — diz Paula, que conseguiu ir morar sozinha depois de frequentar retiros.
 
O discurso faz ponte com o aprendizado empírico de Kagge na solidão da Antártida:
 
— Quando você descobre a si mesmo, descobre os outros também. Acho que muita gente hesita em procurar esses momentos porque ele diz respeito ao autoconhecimento. Com os ruídos, nós fugimos de nós mesmos.
 
Em tempos de influenciadores digitais e baixa autoestima por causa das vidas perfeitas das redes, abaixar o volume dos ruídos para se ouvir é o que de melhor há no streaming da vida.
 


Paula Severiano Ribeiro: adepta de retiros de silêncio - Leo Martins / Agência O Globo

Link
Notícias Relacionadas »
Comentários »