11/12/2019 às 10h54min - Atualizada em 11/12/2019 às 10h54min

Dor de cabeça: será o fim do tormento?

Uma nova classe de remédios promete revolucionar o tratamento das crises de enxaqueca. Veja como os experts controlam as dores de cabeça hoje em dia

- André Biernath
A dor de cabeça é a mais democrática das chateações. Estima-se que 94% dos homens e 99% das mulheres já sentiram (ou ainda vão sentir) essa sensação desagradável ao menos uma vez na vida. Na maioria dos casos, trata-se apenas de um sintoma de outra encrenca, que pode ser uma gripe, uma intoxicação alimentar ou até quadros graves, como tumores e meningites.
Mas numa parcela considerável de pessoas esse incômodo é uma doença em si: falamos daqueles 15 a 30% da população que sofrem com a enxaqueca, cefaleia do tipo tensional ou outras manifestações de algum descontrole no sistema nervoso central.
Engana-se quem pensa que essa seja uma dor que vai embora com um analgésico qualquer. Posso falar com conhecimento de causa: nas poucas vezes em que tive crises de enxaqueca, fiquei totalmente paralisado, deitado num quarto escuro e silencioso enquanto a cabeça latejava. No dia seguinte, sentia uma náusea das bravas e todo o corpo estava dolorido. Imagino como deve ser a vida daqueles que passam por essa experiência vários dias no mês…
“Segundo a Organização Mundial da Saúde, uma crise forte é tão incapacitante quanto um quadro de psicose ou uma paraplegia”, compara o neurologista Fernando Kowacs, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.
Uma pesquisa feita pela farmacêutica Novartis em parceria com a Aliança Europeia para Enxaqueca e Cefaleia ouviu 11 mil pessoas com enxaqueca em 31 países, incluindo o Brasil. Dos 851 cidadãos entrevistados por aqui, 45% afirmaram que tiveram uma redução na produtividade após o início das crises e 17% precisaram faltar no trabalho durante os picos de dor.
O levantamento ainda mostrou que 82% sentem prejuízos na vida social e 56% desistiram de atividades diárias e hobbies. “Fora isso, há aquele estado de tensão e ansiedade constantes sobre quando será a próxima crise”, analisa a psicóloga Juliane Prieto Mercante, do Centro de Cefaleia São Paulo.
Apesar de ela ser tão popular e corriqueira, pouca gente reconhece a condição como uma doença genética e hereditária. “Existe sempre uma explicação para aquela dor: um dia é a menstruação, no outro é uma taça de vinho, depois é a falta de sono…”, conta o neurologista João José de Carvalho, da Sociedade Brasileira de Cefaleia.
De desculpa em desculpa, o problema é empurrado com a barriga indefinidamente. “Num estudo que fizemos, há uma demora de cinco anos para procurar o primeiro médico e uma década até chegar a um especialista”, revela Carvalho. É tempo demais convivendo com algo tão debilitante.
Para piorar, pouca gente sabe que a enxaqueca, o tipo mais impactante, vai além da dor. Os sintomas começam 48 horas antes da crise e envolvem não apenas as pontadas na cabeça, mas alterações na visão e na audição, enjoo, vômitos e até vontade excessiva de comer doces. Quando essa lista de sintomas dura mais de 15 dias num mês, a enfermidade já é considerada crônica e exige uma intervenção quanto antes.
“A notícia boa é que hoje entendemos melhor o mecanismo por trás desse fenômeno e temos ferramentas para contra-atacar”, diz a neurologista Thaís Villa, da Universidade Federal de São Paulo.
Os tipos de dor de cabeça
Cada cefaleia tem características próprias. Veja as diferenças
A cefaleia tensional se torna mais corriqueira a partir dos 40 anos de idade e melhora com a prática de exercícios.
Enxaqueca: as pontadas são fortes e vêm em pulsos constantes, geralmente só de um lado da cabeça. Os sintomas se iniciam até dois dias antes da crise, que dura de quatro a 72 horas. Depois que o pior passa, enjoo, náuseas e vômitos dão as caras. Não raro, aparece uma exaustão profunda.
Tensional: a intensidade vai de fraca a moderada. Costuma se parecer a um aperto constante no cérebro e, na maioria das vezes, atinge os dois hemisférios. Surge no fim da tarde e está relacionada a uma tensão ou a um nervosismo além da conta.
Em salvas: rara, afeta um em cada mil indivíduos. Cerca de 85% dos acometidos são homens. A principal característica está nos surtos, que se prolongam por um a três meses. Junto com a dor, ocorrem lacrimejamento, rubor na face, nariz entupido e agitação.
Cefaleias secundárias: o incômodo na cuca é um sintoma associado a outros males. Quando esse sinal traz em paralelo rigidez na nuca, dificuldades de raciocínio ou irritações de pele, é importante procurar um serviço de emergência rápido.
Os remédios específicos para enxaqueca
Avanços recentes da ciência permitiram o desenvolvimento de medicamentos específicos para o controle da enxaqueca. O primeiro é o erenumabe, da Novartis, que ganhou aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária em março de 2019.
Em agosto, quem recebeu sinal verde foi o galcanezumabe, do laboratório Eli Lilly. Em breve, veremos a chegada de duas outras opções: o fremanezumabe (Teva), já liberado nos Estados Unidos, e o eptinezumabe (Alder Biopharmaceuticals), ainda em pesquisa.
“Os estudos que embasaram o erenumabe mostraram uma redução de aproximadamente 50% dos episódios de crise em metade dos voluntários”, destaca o imunologista Luis Boechat, diretor médico da Novartis.
Parece ser consenso entre os experts que essa nova classe farmacológica representa uma revolução na neurologia: até então, não existia nenhum remédio capaz de agir na raiz do problema. Essas novidades atuam especificamente num tal de peptídeo relacionado ao gene da calcitonina, ou CGRP para facilitar.
“Diversos trabalhos demonstraram que, durante as crises, essa molécula está elevada na circulação sanguínea. A partir daí, começou-se a desenvolver maneiras de controlar esse processo”, explica o neurologista José Geraldo Speziali, professor aposentado da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto.
Até agora, a única possibilidade de controlar as dores de cabeça mais fortes era recorrer a medicações emprestadas de outras enfermidades. Os médicos prescreviam remédios fabricados originalmente para combater hipertensão, depressão ou epilepsia.
O grande porém: esses comprimidos precisam ser tomados uma vez ao dia e podem provocar alguns efeitos colaterais indesejados, como ganho de peso. O resultado disso é que menos de um terço dos pacientes continuava no tratamento após um ano.
“Como os novos medicamentos são aplicados por meio de injeções uma vez ao mês, a taxa de abandono deve ser bem menor”, aposta a neurologista Luciana Bahia, gerente médica da Eli Lilly.
Os novos medicamentos estão indicados para os casos mais intensos, em que ocorrem quatro ou mais crises durante o mês. A proposta é que eles controlem esses quadros e diminuam aos poucos o número de episódios mensais. Mas os progressos não param por aí: algumas pesquisas caminham a passos largos na criação de um comprimido específico para o momento das crises.
O mais avançado nesse quesito é o rimegepant, do laboratório Biohaven Pharmaceuticals, que também atua sobre aquela molécula em alta, a CGRP. Nos testes finais, ele foi capaz de atenuar as pontadas num número significativo de voluntários. É preciso agora aguardar a decisão das agências regulatórias para ver quando ele chegará às farmácias.
Um mix de sintomas
Não é só dor: a enxaqueca tem um monte de manifestações desconhecidas
Uma crise de enxaqueca dura de quatro horas a três dias inteiros. As mais fortes deixam o cérebro em estado de pane.
Bocejar demais: parece fadiga e falta de sono, mas abrir a boca a toda hora já sinaliza o início do desbalanço cerebral.
Vontade de comer doces: é uma ânsia quase incontrolável de devorar sobremesas, especialmente chocolate.
Visão turva: são manchas no foco dos olhos. Duram uns 20 minutos antes da crise. Ocorrem em um quarto dos enxaquecosos.
Sede excessiva: aparece junto com a fome. A necessidade de beber água ou outros líquidos é constante.
Xixi em excesso: quem toma goles e mais goles vai precisar ir ao banheiro a toda hora, concorda?
Alterações auditivas: zumbidos e estalos que atrapalham a capacidade de ouvir podem anteceder em minutos a dor forte e pulsátil.
Constipação: o intestino preso é outro prenúncio comum no período das 48 horas antes das pontadas no cérebro.
Dor no pescoço: a região da coluna cervical fica rígida e dolorida. Não há massagem ou relaxante muscular que resolvam.
Cansaço: a energia baixa não serve como gatilho de dor de cabeça. Na verdade, ela indica que algo não vai bem no sistema nervoso.
O que já existia para controlar a dor de cabeça
Aos poucos, o arsenal contra essa doença se amplia e aumenta as esperanças de milhões de enxaquecosos espalhados pelo mundo. No meio de tantos recursos terapêuticos estreantes, não dá pra se esquecer de um que já está disponível há alguns anos e funciona numa parcela dos pacientes: a toxina botulínica.
“As injeções de Botox, indicadas para quem tem mais de 15 crises ao longo de um mês, paralisam nervos envolvidos com o processo”, destrincha o neurologista Igor Bruscky, professor coordenador da Liga de Dor de Pernambuco.
Claro que os analgésicos comuns, desses que a gente compra livremente nas drogarias, têm um papel a cumprir também. Quando a cefaleia é pontual e não está relacionada a outros sintomas, esses fármacos são excelentes opções para trazer alívio sem precisar correr ao pronto-socorro mais próximo.
Só é preciso ter cuidado com o abuso: tomar esses remédios de forma repetida e sem critério representa um perigo dos grandes. Pra começar, o excesso prejudica o funcionamento dos rins.
“Além disso, o exagero faz a medicação perder seu efeito e a dor se perpetuar em crises mais frequentes e severas”, alerta Thaís Villa. Engolir mais de oito desses comprimidos por mês já é preocupante.
Veja mais: 4 fatores que comprovadamente disparam crises de dor de cabeça
Quando a dor de cabeça fica constante
Conheça os fatores e comportamentos que fazem as cefaleias se tornarem frequentes
Oito em cada dez pessoas com dores de cabeça frequentes tomam mais analgésico do que o recomendado pelos médicos.
Ser mulher: o público feminino apresenta enxaqueca crônica com muito mais frequência que o masculino. Não se sabem os motivos exatos disso.
Depressão: a tristeza profunda motiva dores de cabeça. O inverso também acontece: a enxaqueca grave faz subir o risco de sofrer com a melancolia.
Obesidade: o excesso de peso torna mais difícil o combate ao aperto na cuca. Fatores hormonais parecem estar envolvidos nessa relação.
Transtornos de humor: o mesmo raciocínio da depressão se aplica a ansiedade, bipolaridade e outros distúrbios psiquiátricos.
Baixo peso: quando o índice de massa corporal (IMC) está abaixo de 19, a probabilidade de a doença se manifestar vários dias fica elevado.
Exagerar nos analgésicos: eles até desanuviam a cabeça na hora, mas errar na dose traz o efeito rebote: experiências dolorosas mais fortes.
Alimentação, exercícios e auxílio psicológico ajudam
Em paralelo ao tratamento com os remédios, o profissional de saúde costuma indicar uma série de recomendações e mudanças no estilo de vida. “É essencial manejar o estresse, se alimentar bem, respeitar as horas de sono e praticar exercícios”, lista o neurologista Mario Peres, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Durante as consultas, o médico vai investigar a rotina do paciente para encontrar comportamentos e padrões que impactam a saúde e podem contribuir de alguma maneira para o desequilíbrio do sistema nervoso. Logicamente, intervir nesses quesitos é um primeiro passo para a melhora.
Na parte da dieta, por exemplo, o principal é evitar longos períodos de jejum, que podem ser um gatilho para o início das crises. Fazer alguma atividade física de rotina também é uma ótima maneira de balancear o cérebro.
“Em alguns casos, o acompanhamento com o psicólogo ou o psiquiatra ajuda a detectar aflições emocionais e os melhores meios de dissolvê-las”, aponta Juliane Mercante.
Reservar momentos de lazer e descanso na agenda é outro ponto que não pode ficar de fora da luta contra as dores na cabeça. O estresse pesa mesmo.
Para esclarecer a população sobre o impacto de enxaqueca e companhia limitada, a Sociedade Brasileira de Cefaleia lançou recentemente a campanha “Três é demais”.
“A mensagem que queremos passar e gostaríamos que ficasse clara para todo mundo é: se você tem três ou mais episódios de qualquer intensidade durante o mês, procure um médico. Não importa quantas explicações você tenha para justificar esse incômodo”, recomenda João José de Carvalho, um dos criadores do slogan.
Até porque, como você vê, é possível, sim, amenizar as crises. E tudo se inicia com um diagnóstico preciso, feito por um médico que entende do assunto. Uma cabeça leve e livre de pontadas está ao alcance de todos — e não é necessário ser nenhum deus grego (ou recorrer a artifícios da pesada) para alcançar esse objetivo.
Funciona mesmo?
O que a ciência diz sobre tratamentos que ainda não são consenso no controle das dores de cabeça
Propagandas na web chegam a afirmar que a “cirurgia da enxaqueca” traz a cura para 90% dos casos. Cuidado para não cair em ciladas!
Acupuntura: de acordo com o último parecer assinado por experts brasileiros, as agulhas colocadas em pontos específicos até possuem alguma eficácia. Elas não seriam a primeira linha de tratamento, mas podem auxiliar em algumas situações se feitas por acupunturistas qualificados.
Dispositivos portáteis: é possível encontrar tiaras que lançam um pequeno estímulo elétrico na região da cabeça para relaxar alguns nervos. Apesar de estarem aprovadas pelas agências regulatórias, seus resultados são bastante contraditórios. Ainda carecem de novos estudos.
Cirurgia: “Não existe nenhuma comprovação científica para a realização desse tipo de procedimento”, afirma o médico Marcelo Ciciarelli, da Academia Brasileira de Neurologia. Essa operação é contraindicada em diversos lugares do mundo, como Estados Unidos e Europa.
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