13/09/2017 às 10h03min - Atualizada em 13/09/2017 às 10h03min

Pais trancam filha com problemas mentais à espera de internação permanente em SP

G1
Ela gosta de leite com aveia no café da manhã, de ver novela e jogo de futebol na TV e, quando está com sede, estica a garrafa de plástico no meio das grades para a mãe ir buscar água na cozinha. Quando está brava, quebra o que vê pela frente e grita a ponto de a vizinhança escutar.
Ana* tem 31 anos, mas se imagina no corpo de uma criança de 7, segundo familiares. Vítima de sequelas de uma meningite aos dois meses de vida, a jovem cresceu, mas seu cérebro não se desenvolveu, assim como sua fala, sua audição e seu poder de discernir a respeito de seu comportamento no convívio social.
Seu jeito agressivo e a falta de uma internação permanente, descartada pelos médicos, levaram seus pais a tomarem uma medida drástica e questionável aos olhos da lei. Há um ano e meio, a jovem viu seu quarto se transformar em uma prisão, uma suíte com direito a cela e cadeado.
 
"A gente não quer isso pra ela, a gente só quer o bem dela. Infelizmente foi a maneira que teve pra segurar ela", afirma o pai, o autônomo Petrônio Gonçalves, de 63 anos.
A Polícia Civil informou que vai instaurar um inquérito por cárcere privado, mas que, na mesma investigação, vai apurar se houve omissão por parte do poder público em relação à família da paciente. "Pelo que a gente está vendo, ele [o pai da mulher] não está tendo muito apoio do município. Até hoje ela não foi internada", diz o delegado José Augusto Franzini.
A Prefeitura de Serrana informou que a mulher foi atendida pelo Ambulatório de Saúde Mental do município, que avalia a possibilidade de tentar uma vaga na rede estadual.

A Secretaria de Estado da Saúde, por outro lado, informou que "somente casos mais graves de saúde mental devem ser encaminhados para internação" e que o acompanhamento deve ser feito pela rede municipal.

 

Da meningite à 'prisão'

As limitações de Ana foram determinadas por causa de uma meningite aos dois meses de vida que foi tratada, mas deixou marcas permanentes. Somente aos 2 anos, a família percebeu as primeiras sequelas cerebrais, na dificuldade constante da criança em ouvir.
"Eu vi que ela estava demorando a falar, aí a gente foi descobrindo que ela não escutava. Levei pra ver e confirmou. Ela virava de costas, a gente chamava, ela nem olhava", conta a mãe, a doméstica Lázara Gonçalves, de 57 anos.
Os anos passaram e a aparente calmaria dos primeiros anos da infância até a adolescência, marcadas por idas a escolas especiais e ao contato com os outros, acabou com a chegada da fase adulta, quando as vontades biológicas, como o de conhecer alguém, se casar e ter filhos, confrontaram-se com sua condição.
"Após os 20 anos, ela começou a ficar mais agressiva, mais revoltada até, não sei se com ela mesmo, acho que ela percebe algo errado mas também não sabe. Ela quer muito ter filho, muito essas coisas, tanto é que após os 20, que ela começou a ficar mais revoltada, começou a dar muito trabalho em casa, querendo sair, batia nas coisas, avançava na gente e no fim ela conseguia sair", afirma o irmão, o porteiro Maicon Gonçalves.
Antes da instalação da cela em seu quarto, a porta de madeira era suficiente, mas ficou frágil para os ataques de histeria. "Foi chumbada na parede a grade. Ela bate tanto que se fizer uma soldinha simples ela quebra", diz o irmão.
Do mesmo modo, Ana quebrou a TV que tinha no quarto. "Ela gosta de pegar ferramenta e jogar na gente. Se você colocar um objeto que ela pode quebrar em vários pedaços ela vai jogar."
O muro da casa era baixo demais. "A gente descuidou um pouquinho com a escada, pegou pra usar e não guardou, subiu a escada e pulou pro lado de lá", afirma Lázara.
Fora da redoma, Ana pode ser perigosa e ao mesmo tempo frágil, de uma maneira imprevisível. Dentro de casa, é capaz de arremessar um objeto qualquer em direção aos que estão próximos. Na rua, é capaz de furtar algo, porque sabe que dinheiro compra aquilo que lhe desperta desejo, dizem seus familiares.
Contam seus pais que, quando conseguia escapar, tornava-se alvo fácil de estupradores, mais de uma vez. Assim mostram os inúmeros boletins de ocorrência por abuso de incapaz registrados até antes da alternativa ao cárcere. "Todo dia ela chegava falando que homem abusou dela, chegava machucada", diz a mãe.
Quando não estava em uma circunstância dessas, Ana pegava um ônibus em direção a Ribeirão Preto (SP) ou outra cidade da região, sem pagar passagem, à revelia de qualquer tentativa de impedimento. "Ela caía no chão pra chamar ambulância pra ela, porque ela gosta de tomar injeção em hospital", explica o irmão.
Nos melhores dias, os sumiços acabavam quando um policial a localizava e a identificava, conta a família. Nos piores, ela dava um jeito de voltar, geralmente com as roupas sujas por fezes e urina. "Do jeito que ela está ali se eu abrir ela vai mesmo pra rua, não tem quem segure", afirma Lázara.
 

Internação permanente

Após as recorrentes ocorrências envolvendo a filha, tudo o que os pais conseguiram foi, há quatro anos, uma internação no Hospital Santa Tereza, em Ribeirão Preto (SP), por pouco mais de um mês.
A filha recebeu alta e desde então permanece em casa com tranquilizantes que, segundo a família, não ajudam. "Falaram que o que tinha que fazer já tinham feito. Que era pra ela tomar o remédio em casa", afirma a mãe.
Os pais de Ana afirmam não gostar em nada da vida que proporcionam à filha. Sem esperanças de reabilitação, dizem ter consciência de que é errado mantê-la presa em casa, mas alegam não saber o que fazer. “A gente não se acostumou, é difícil, não tem o que fazer, é muito triste, é complicado, ainda mais do jeito que ela está ali”, afirma a mãe.
Defendem que a única saída é uma internação permanente em um hospital capacitado, mas não têm dinheiro para isso. Ao recorrerem ao poder público, afirmam que conseguiram somente a prescrição de uma nova medicação para Ana tomar antes de dormir.
"O melhor pra ela é uma internação num local em que ela possa morar, ela precisa de acompanhamento constante, de vigília constante", afirma Maicon.
Há seis meses titular da Polícia Civil de Serrana, o delegado José Augusto Franzini confirmou ter ido à residência da família e, diante da situação da jovem, vai instaurar um inquérito por cárcere privado.
Por outro lado, avaliou a princípio que a decisão foi tomada "em desespero" pela família e vai apurar a responsabilidade das autoridades municipais de saúde no caso. 

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